OPINIÃO | Divaldo Martins da Costa: A Verdade e Farsa (*)

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O STF concluiu quinta-feira o julgamento dos três primeiros acusados de atos de vandalismo e depredação do patrimônio público no dia 8.1.

Os três acusados foram condenados a cumprir elevadas penas de reclusão.

A base da decisão colegiada condenatória foi o voto do relator da matéria, o ministro Alexandre de Moraes, sob a ALEGAÇÃO da prática dos crimes de “Golpe de Estado” e “Abolição Violenta do Estado Democrático” (sob a forma tentada) e de “Dano Qualificado” (sob a forma consumada).

A conclusão do egrégio STF, “data venia”, sugere algumas reflexões sobre os requisitos de uma condenação judicial válida: foro competente; juiz competente em razão da matéria; juiz isento e imparcial; decisão proferida com base no fato, na prova e na lei; e, adequada dosimetria da pena.

Bem que, academicamente, poderíamos fazer uma análise crítica desses três julgamentos, essencialmente iguais, como se a ciência jurídica fosse regida por regras cartesianas.

Eu vejo, de início, uma questão preliminar, meramente processual, intransponível, consubstanciada na incompetência de foro, pois o STF, em matéria criminal, só é competente para julgar os “mais iguais”, os figurões da República, como o presidente, ministros de estado, ministros de tribunais superiores, senadores, deputados federais, “et caterva”. Não aparece na Constituição Federal a sua competência para julgar os “simplesmente iguais”, os anônimos, os que povoam a base da nossa estratificação social, como é o caso dos três “pobres coitados”, julgados e condenados, nesta semana, por conta dos atos de vandalismo do dia 8.1.

Vejo também uma outra questão formal, puramente processual: se o STF fosse o foro competente para julgar aqueles pobres mortais, o relator do processo haveria de ser indicado por sorteio dentre os seus ministros, em sessão pública de distribuição processual, e isso não aconteceu.

No mérito, a tríplice condenação do STF pareceu-me precipitada e vingativa, pois não é crível, juridicamente falando, cogitar-se da prática dos complexos crimes de “Abolição Violenta do Estado Democrático” e de “Golpe de Estado”, mesmo sob a forma de tentativa, sem uma investigação profunda, sem constar dos autos PROVAS CABAIS de que os três acusados portavam armas de fogo, ou qualquer instrumento contundente, perfurante ou cortante, ou que mantiveram posturas comprovadamente violentas no dia 8.1, que pudessem, de forma efetiva, leva-los à consumação desses crimes, de difícil execução.

Mais: como falar-se de crimes de “Golpe de Estado” e de “Abolição Violenta do Estado Democrático” sem a comprovação da existência de uma autoria intelectual, de uma orquestração política prévia, de uma multidão armada contando com forte apoio de forças militares ou paramilitares?

Como se viu na tevê, no dia 8.1, nenhum dos três acusados condenados ostentavam armas de fogo ou instrumentos hábeis à prática de tais crimes, que ocorrem, amiúde, nas periferias, favelas e morros, sob os olhares cúmplices das nossas autoridades.

Por outro lado, o ministro relator, no seu voto, não se referiu à existência de uma organização política golpista que tivesse planejado e estivesse a coordenar os crimes de “Golpe de Estado” e a “Abolição do Estado Democrático”, pois que também teriam de responder pelos mesmos crimes; muito menos, se referiu à cobertura de forças armadas, militares ou paramilitares, cujas circunstâncias negativas levam ao reconhecimento da impossibilidade de tentativa de materialização desses crimes, por parte dos três condenados, nos eventos do dia 8.1.

Em verdade, causou-me estranheza a abrupta mudança de hábito do STF, pois no exercício de sua regular competência constitucional, ou seja, quando de julgamentos
dos “mais iguais”, dos figurões da República, ele sempre foi muito cioso, reticente, mesmo, na avaliação da quantidade e qualidade das provas, para concluir pela culpa de qualquer acusado; preferindo, não raro, manter-se inerte, em silêncio profundo, sem julgar o mérito da causa, até que a pretensão punitiva do Estado fosse alcançada pela prescrição.

Voltemos à carência de prova: não houve no processos dos três condenados a fase da produção de provas, requisito indispensável a um julgamento isento e imparcial. Noutras palavras, se não foram produzidas provas cabais de que os três indigitados acusados cometeram aqueles gravíssimos crimes, a sua absolvição era de dever. Isto porque,
como é de cediço conhecimento no estudo da ciência do Direito, o que condena e o que absolve são as provas; o que não se prova é como se não tivesse acontecido, mesmo que tivesse. E, por que é assim? Porque, da história da humanidade, com a evolução dos pensamentos jusfilósoficos, e com os estudos da ética e da moral, emergiu a compreensão de que, na DÚVIDA, é preferível absolver um culpado do que condenar um inocente. Ou seja, só a PROVA CABAL de que um crime foi cometido e o acusado foi quem o COMETEU pode libertar o juiz das preocupações interiores da difícil missão de julgar os seus semelhantes; uma exceção, aliás, à advertência bíblica: “Não julgueis, para não ser julgado”. Daí, a síntese que nos foi legada pela Direito Romano: “in dubio pro reo”.

Quanto aos crimes de dano ao patrimônio público, os mesmos parecem ocorridos, tendo em vista o que a televisão mostrou.

Mas quem foi que fez aquele “quebra-quebra”? Ficou provado que foram os três condenados? Ou foram outros manifestantes, dentre os que já estão presos? Ou foram, ainda, vândalos infiltradas na manifestação do dia 8.1?

Falam muito dessa ocorrência. “Vox populi, vox dei”.

Fato concreto é que não houve registro no voto do ministro relator de que havia prova nos autos de que os acusados foram os responsáveis pela depredação dos prédios dos Três Poderes.

E, por essa perspectiva, impunha-se a necessidade de produção de provas, para identificação dos autores materiais dos crimes, e individualização de condutas no evento-crime, para que cada um recebesse a punição do Estado-juiz na proporção dos crimes cometidos. E, isso também não aconteceu, a evidenciar que os processos dos três acusados não estavam maduros para julgamento.

Na tese do ministro Alexandre de Moraes, as condutas criminosas se caracterizam como “crimes de multidão, cuja autoria se dá pela coletividade. As condutas são da turba, um incitando o outro. São todos copartícipes do crime. Não há necessidade de detalhes minuciosamente as condutas de cada agente.”

Não é bem assim, “data venia”. No estudo do Direito aprende-se que na investigação do fato criminoso é mister perquirir sobre a autoria, mas também sobre a individualização das condutas atípicas de cada um dos envolvidos, no caso de concurso de agentes, como premissa para uma eventual condenação idônea. Sem a cabal comprovação da autoria, e a individualização das condutas dos agentes envolvidos no evento-crime, não há prova cabal quanto à autoria do crime, em relação a cada um dos acusados. Logo, não poderia haver condenação, pois como disse atrás, quem condena e quem absolve são as provas.
Mas, infelizmente, vivemos em um estágio de completo desmembramento (de cortar os membros) do nosso ordenamento jurídico. Não mais se observam as leis penais e processuais penais vigentes no País. Ou, quando aplicadas, não se investigam sobre a sua “mens legis”, dando-se ênfase aos seus fundamentos teleológicos, finalísticos mesmo.

Por fim, urge registar que a dosimetria das penas mostrou-se exorbitante. Uma justiça acostumada a ter “mãos jardineiras” para julgar traficantes de drogas e criminosos do colarinho branco, e a “passar a mão na cabeça” de políticos corruptos, de repente, aplica, em média, 17 anos de reclusão aos três condenados pela “participação presumida” (crime de multidão) em atos de vandalismo.

A pena, “in concreto”, pareceu-me por demais exagerada. A justiça há de ser razoável, comedida; nunca, jamais, vingativa. É o que se aprende nos bancos das faculdades de estudo jurídico.

Enfim, sob a perspectiva do voto do ministro Alexandre de Moraes, não é exagero afirmar que o STF se transformou num tribunal político. E, política, atualmente, se faz com narrativas.
Narrativas novas.

Pois, como se sabe, propriedades rurais, estações de metrô, monumentos históricos e o prédio do Congresso Nacional já foram várias vezes vandalizados, depredados e destruídos pelos “exércitos” da CUT e do MST, e nunca se viu qualquer medida punitiva do STF contra os seus membros e dirigentes.

Faltam ainda ser julgados mais de mil acusados, que se encontram presos ou usando tornozeleiras eletrônicas. E, pelo andar da carruagem, tudo indica que a atuação do STF vai ser a mesma, a relembrar o que acontecia na Justiça de Espanha, ao tempo do ditador Generalíssimo Franco, como narrado pelo historiador uruguaio Eduardo Galeano:

“Acima, no alto do estrado, envergando sua toga negra, o presidente do tribunal.
À direita, o advogado.
À esquerda, o promotor.
Degraus abaixo, o banco dos réus, ainda vazio Um novo julgamento vai começar.
Dirigindo-se ao meirinho, o juiz Alfonso Hernández Pardo, ordena:
– Faça o CONDENADO entrar.”

(*)
Divaldo Martins da Costa – juiz de direito aposentado e advogado.
Ex-socialista, transitou pelo liberalismo econômico, recentemente teve um “caso” com a monarquia, mas está com um pé no anarquismo filosófico.

Júlio Gadelha http://ovies.com.br

Estudante de Jornalismo graduado em Marketing: Explorando o caminho brasileiro da Democracia e da Política.

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